16 abril, 2006

Dona Nada

DONA NADA


Lá estava ela, sentada sob a única cadeira da imensa varanda. Corpo magro, coberto por um pobre vestido de cetim, o cabelo acinzentado estava cuidadosamente preso. Tinha olhos claros que escondiam muito mais do que revelavam e pareciam estar perdidos num passado não vivido.
Deveria ter lá os seus 60 anos, ao menos é o que acusavam as marcas que o tempo foi esculpindo em seu rosto.
A casa era grande e ia se tornando cada vez maior a medida que os filhos iam em busca de suas próprias vidas. Apesar de limpa a casa se parecia mais com um velho casarão abandonado, as paredes estampavam uma cor amarelada que um dia já fora branca e os sofás viviam eternamente cobertos por lençóis gastos e rotos.
Poderiam os olhos percorrerem por qualquer canto em busca de algum fragmento de vida, que dificilmente encontrariam.
Dona Nada não tinha flores e nem plantas porque julgava dar muito trabalho, animais de estimação não possuía porque sujavam a casa, apenas o marido insistia na solidão de sua companhia.
Havia dias em que tão alto era o silêncio que os pensamentos pareciam ser ditos e dona Nada chegava a temer que o marido a escutasse, pois havia emoções que gritavam em seu peito.
Seu universo pessoal caminhava além dos arredores da casa. Possuía o seu próprio mundo interior, onde fervilhavam idéias, planos e projetos que, covardemente, se evaporavam junto aos sonhos que não mais ousava possuir.
Embora tenha deixado de lado tantos planos que na juventude fizera, dona Nada não conseguia se ver livre de um turbilhão de sensações que a agitavam, devastando sua rotina interna.
Por detrás da fria imagem de mulher sensata, pulsava, latejante, a outra, a dona Tudo, aquela que vibra, que sente, se emociona e deseja, aquela mesma mulher que outrora ambicionava um amor romântico e uma carreira artística , traçada caprichosamente por seus próprios pincéis.
Aquela pequenina cidade onde vivia dona Nada, as pessoas que por sua calçada transitavam, não poderiam imaginar que, a clara mansidão de seus olhos, escondia uma voraz tempestade.
E eram tantos os desejos, os sonhos irrealizados, tantos mais do que dona Nada poderia suportar, pois aprendera desde cedo as virtudes competentes a uma mulher cujo caminho, cruelmente estabelecido pelo grande juíz da hipocrisia social, a conduzia por uma estrada de mão única.
Seu destino se estabelecera muito cedo, precisamente aos 22, quando se casou com Tibério.
E o sim, dito com tanta resignação, a ela representava um contrato perpétuo e intransferível de esposa fiel e mãe dedicada, num mundo sem espaço para seus sonhos.
Abandonou, então ,suas aulas de artes plásticas e seu ideal de se tornar uma grande pintora.
Aprendeu a cozinhar, tricotar, lavar e passar. Aprendeu também a difícil tarefa de ser mãe, gerar, cuidar, criar, educar. Aprendeu, como ninguém, a desempenhar estes papéis.
E tudo passou tão rápido que não houve tempo de dona Nada aprender a simplesmente ser.
Foi ao longo dos anos reprimindo tudo que era realmente seu para brindar a vida e a glória dos seus.
Os afazeres domésticos nunca lhe permitiram ser coerente com seus desejos.
Suas emoções vinham via parabólica, figuradas em uma tela colorida. Sorria e chorava junto às atrizes de novela. Conhecia o mundo através das palavras do noticiário de TV.
Mas, tão vasto é o campo que abrange o ser, que seus sonhos não se perderam por completo em meio às frustrações, ficaram apenas encaixotados no baú do inconsciente.
Os pudores, ainda atados ao vulto de uma castradora moralidade, a impediam de viver sua própria história. Porém, os fantasmas, que dentro de si habitavam, ansiavam loucos por liberdade, fazendo revolucionar os antigos padrões e desabando a muralha que a separava da vida.
Foi o acúmulo do “nada”, o tédio total e absoluto que consumiam os seus dias em oposição à vida que pulsava, mostrando-se presente, que a fizeram a entrar em um longo processo de redespertar.
Entretanto dona Nada não saiu por aí, correndo loucamente em busca de emoções. Não...A vida não acontece como nos contos de fada.
Não havia disponível nenhuma varinha de condão, mas havia sim, empoeirando sobre o armário, suas telas, tintas e pincéis.
Dona Nada percebera que o branco das telas retratavam, com perfeição, longos anos de si mesma. Chorou, chorou demasiadamente e em meio a tantas se lágrimas lembrou da personagem da novela das oito, que, do fundo do poço, emergiu gloriosa.
Encheu-se de coragem, e encorporando o papel da heroína, levantou a cabeça, enxugou as lágrimas como em uma performance teatral e, invadida por grande ansiedade fora retirando cada tela, cada tinta, cada pincel. Preparou todo o material, começando imediatamente a pintar.
E nos seus quadros foram surgindo cada fragmento de vida não vivida.
Havia flores, rios, mares, países não visitados. Havia amantes, risos, paixões sobrepostas ao medo.
Estampava, com todas as matizes, as mágicas nuances que a arte permite. Navegava em lua de mel, ora brilhava no céu feito estrela, ora caminhava por longas veredas floridas. Às vezes, ficava estática junto à natureza morta e, quando suas idéias surgiam em veloz turbilhão, logo se via um mundo abstrato.
Desde modo, dona Nada fora, pouco a pouco, pincelando de cores os sonhos que a vida houvera desbotado.

(Escrito 1992)

Um comentário:

JEAN SCUDELLER disse...
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